segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Tempo

Sob o céu cinza que vela o dia frio, o vento faz perderem-se os segundos. Sopra para longe o tempo e imola os resíduos de vida sedimentados sobre a inércia do silêncio. No segredo da manhã, o sol irrompe o céu triste e dispara raios de luz que deslizam sobre a superfície das águas. Não há nada sob ela, é somente o puro abismo superficial. O mistério trespassa o continuum da vida e lhe rouba preciosos instantes infinitesimais.  Se a noite vale-se do charme e do artifício da aparência, a manhã é a própria ilusão, dissolvendo o mistério na intermitência do tempo e derrogando o próprio tempo, sem deixar quaisquer resquícios de seu ritual criminoso — ela nunca acontecerá.

Ninguém na praia. Acalentada pelo réquiem da tempestade, a areia fina é posta a movimentar-se, desviada fatalmente de seu destino no encontro mortal com as correntes de destruição. Voyeur não complacente, ao sol resta derramar uma lágrima, ao passo em que, lenta e timidamente, cobre seus olhos ao esconder-se por de trás das nuvens ligeiras. Ele, por sua vez, está velho, já sem destino algum. Inerte. Das costumeiras lágrimas, somente obtivera seu fulgor enferrujado pelo tempo implacável. Pós-festa, só restarão as ruínas babilônicas da beleza e da paz.

Ninguém na estrada. Sequer uma alma transiente para testemunhar o incurso do fim. Contraposição da estrada ao tempo: ao passo que o asfalto conduz a muitos destinos, o tempo, cruel e sádico, impiedoso, desvia a um só. Encontro fatal, não pode ser avistado nem mesmo nos quilômetros finais, mas nos será fiel e pontual: estará inevitavelmente lá, na justaposição dos destinos. Embaralhem-se nos caminhos, decidam livremente a sequência de estradas a seguir, esmerem-se ao planejar o percurso. Nada desvia a estratégia do tempo. Assina sua sentença, por fim, em uma deflexão diabólica. Nos metros finais, há somente o silêncio do enigma, fardo transportado ao longo de uma vida inteira. Não há perguntas, nenhum porquê, somente uma dívida não quitada da única certeza radical que se dispõe em vida, uma hipoteca com o tempo — sua condição. Nosso destino será cumprido.

Já não há vida em lugar algum. Foi-se o tempo em que ela transbordara. Havia vida por toda a parte, em demasia. Foi-se o tempo. Não há mais vida. O segredo, entretanto, mantém-se intacto. Incólume à empreitada divina do tempo, agora ele repousa sob o signo do silêncio. E, justamente quando se acreditou que o tempo arquitetava sua derrocada, despojá-lo de qualquer enigma, os dois tornaram-se cúmplices. Conjunção fatal: não foi o segredo que fora revelado ao final da vida, mas a vida que desvanecera na noite do segredo. Destino inverso ao nosso: reversão irônica sob o signo do tempo — o segredo, em algum lugar, ri de nossa diligência —, o fluxo temporal não desvela o segredo; amplia seu invólucro de enigma. Mais tempo, mais segredo. Não há vida que resista.

Pacto de sangue: a excrescência do silêncio enerva o movimento poético do tempo, que é carregado por seus próprios ventos da morte. Desfalece sob o peso insustentável de um segredo que absorvera toda a vida. Já não há mais tempo que embale o mistério. Torna-se, por fim, humano e desaparece sob seu próprio signo — o tempo está com os dias contados. Nossa contagem é também a sua. Morre por decrepitude, sepultado sob o encanto do segredo. Esse, por sua vez, jaz em seu silêncio sempiterno e passa a devorar-se a partir de seu interior. Já não há ninguém para perguntá-lo. Dívida quitada: no fim, o destino estará lá.

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Acordar

Acorda-me pela manhã, pois me perco em teus braços findada a noite. Vazia, a cama parece-me imensa e solitária, somente para me dar a certeza de que, por mais um dia, te perdi por entre meu encanto. Afundo no lençol, mortalha da dor e do desespero, bálsamo da ilusão que oblitera-se ao nascer do sol. Da noite, somente teu perfume delirante suspenso no ar e no tempo, resguardado nos poros do fino tecido. Foge-me a miragem quando procuro em vão através dessa imensidão. O amanhã levou-me segundos preciosos e eu os quero de volta.

Todo dia deveria ser noite eterna. Do choque entre os corpos à perda da alma, teu beijo nada desperta em mim. Do contrário, faz-me esquecer a aposta do amanhã, delindo meus sentidos, desperta a mim. No descolar de nossos lábios, encontro-me um segundo mais velho e um instante mais próximo da morte. Deixo em ti minha juventude; aporto-te agora, portanto, a minha vontade de viver. Contigo, não sou outro que não tu — seguro teu espelho. E por um instante a mais é tudo que rezo durante o dia infindável, na esperança calorosa de perder-me de mim para encontrar-te à noite escura.

Encontro marcado com a morte que tanto procuro. Encontro às cegas. Joga-me de volta ao absurdo do real e livra-me da miséria de meus sentimentos incompletos. O saguão, vazio, já não comporta móveis. Observo a queda veloz da chuva atravessada a vidraça, dividido entre o conforto da solidão e a fúria da tempestade. Talvez, nesse ponto, eu seja apenas a vidraça, inerte, em lugar algum, sem poder tomar qualquer posição que não a insignificância: olham não para mim, mas através de mim. Simultaneamente, sito no centro do conflito; solidão inexorável encharcada pela fúria das águas.

Não há presente algum. Meu tempo esgota-se em todos intervalos permeados pelo desejo de tua presença. Futuro infinito. Não há, contudo, qualquer redenção ou qualquer esperança. Encontro-me perdido no fluxo, a fluir neste amor vagabundo. Quando o próprio amor não cessa a caminhar, que me resta senão acompanhá-lo? Vou atrás — já nem sei de que, de minha consciência ignara, talvez.

Acorda-me durante a noite com a tua ausência sempiterna; o beijo que me falta, o toque que deixa desejar e o olhar que reflete o vazio... do espaço, do tempo e do espírito. Assim, torna-me completo: tua ausência reveste-se com o irrecusável desafio a querer-te em demasiado. E a possuir-te no segundo presente, com medo de perder-te no futuro acidental. Pára, deixa no ar. Meus sentimentos repousam sobre a noite, não os desnuda. Em vida, afasta-te de mim, teus lábios moventes já não deslizam em consonância com os meus, mas para longe deles, sorvendo minha aura no cindir de nossos seres para além meu sonho. Acordei, sem ti.

Acorda-me então, pois sem ti já não o quero mais.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Não há último adeus

(ou talvez essa seja a forma de me despedir de alguém importante)

Estavam todos de preto e calçando sapatos. Eu havia saído de casa de botas e já não contava com qualquer esperança de que cancelassem o evento — as pessoas não morrem de novo só porque você é estúpido demais para escolher botas em vez de sapatos para ir em um velório. Logo, preferi manter-me à distância, ao menos evitaria que me confundissem com um indigente, embora eu fosse da família. Era uma segunda-feira e muitas pessoas precisariam de anos para esquecer aquelas poucas horas. 

Nunca havia visto um velório tão cheio. Facilmente, poderia contar mais de duzentas pessoas ali. Uma senhora aproximou-se de mim. “Ele era importante?”, perguntou. “Foi um heroi.” “Mesmo? O que ele fez?” “Sobreviveu sessenta anos”, respondi. Rebateu meu olhar de indiferença com fúria e confusão. Desviamos o caminho de nossos olhos e eu segui acompanhando a cerimônia. Há um ponto na vida em que se apagam as fronteiras entre a vida e a morte. Os dias amanhecem cinza e a vida simplesmente resolve não lhe sorrir, você acorda exausto e não quer saber de nada e nem ninguém, apenas implora para ter uma maldita arma na primeira gaveta do seu criado-mudo. Não tem. Você amarra os sapatos e vai trabalhar, sem saber que por volta das dezenove horas vai pedir à sorte que o revólver esteja lá ao final da noite. É o seu rosário cotidiano, na falta de entorpecentes mais poderosos. 

Por um tempo cheguei a esquecer que as pessoas costumam chorar nessas horas. Era o meu sexto velório em dois anos e eu não havia derramado sequer uma lágrima. Eu não era nenhum assassino profissional, mas havia enterrado seis pessoas. Seis. Sem derramar uma única lágrima. Àquela altura, enquanto centenas prestavam condolências ao corpo desfalecido, eu prestava minha indiferença. Era visível: eu já estava morto por dentro e apenas encarava tudo aquilo me perguntando “céus, será que vou demorar muito?” Algumas pessoas contabilizam sua experiência na terra em anos de vida. Passei a marcar meu tempo em pessoas mortas. Quando você começa a perder pessoas demais, talvez deva ir embora. Digo, eu confiava em míseras duas ou três pessoas no planeta inteiro. E naquele presidente negro dos Estados Unidos. Talvez eu derramasse uma lágrima ao vê-los num caixão ou atirados à sarjeta na frente de casa. Mas a morte, até ali, não me havia amolecido. 

Uma vez me senti mal. Por deus, tinha um corpo morto ali. Dezenas choravam a perda de uma pessoa querida e eu permanecia ali, no meio de todos, a uns quatro passos de distância do caixão, checando meu relógio a cada trinta segundos. Tentei chorar. Uma mão apoiou-se sobre meu ombro. “Tudo bem, estou legal. Obrigado”, respondi, fazendo um sinal com a mão. Era o segurança, solicitando que eu me dirigisse para fora da sala: as pessoas estavam ficando incomodadas com a minha péssima atuação. É o que você ganha por tentar mostrar um pouco de respeito. 

Após algumas horas o local inteiro esvaziou. Permanecíamos eu e minhas botas, separados de um cadáver por uma parede de concreto. Encarei a inscrição no túmulo por alguns segundos. Vivera bons momentos com aquele cara, e agora ele era somente um tecido barato, vermes e dor transbordando de uma caixa de madeira. Eis a ironia: você vive uma vida prostituindo-se por alguns momentos de felicidade, a vida te leva e tudo que resta é dor para todos aqueles próximos de você. Esse é o seu legado: sessenta anos procurando a merda de uma felicidade para descobrir que essa porra toda é uma grande piada. Talvez eu esteja demorando demais mesmo. Espero que aquele revólver esteja lá essa noite.

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Belinda

Fosse uma segunda ou uma quarta-feira, ela nem lembraria, sequer ligaria. Não situava-se em memória alguma, tempo algum. Os dias estavam ao seu lado. Os segundos eram seus. Todos eles. Passavam timidamente, um a um, quase como se pedindo licença. Transfigurava o dia e a noite, numa singela brincadeira: num suspiro nascia ao sol, no infinito se punha à noite. Extinguia-se o tempo e toda a razão de ser. Belinda emanava vida, num outro dia, num outro pôr-do-sol. Deitava-se no banco de trás do velho conversível enquanto eu dirigia, formando figuras, contando mentiras. Só notávamos que o tempo nos havia perpassado ao cair da noite. Seu destino era o horizonte, onde acordasse, aonde o vento a levasse, apenas vivia o chão sob seus pés e o céu sobre sua cabeça.

Jamais consegui decifrá-la, apenas acreditava em seus olhos — falassem a verdade ou não, bobo, pouco ligava. “Belinda, que me importa o tempo, Belinda? Nada mais. Que me vale o azul do céu profundo se somente por teus olhos posso ver? E o frio de julho, que me vale, se somente por teu toque posso senti-lo? Nada mais, Belinda. Nada mais.” Seus olhos verdes roubavam-me, a alma, a juventude. E ali, na superfície de seu olhar, encontrava-se toda sua profundidade. Era o que era, uma eterna criança. Recusara-se a crescer somente pelo prazer desse desafio. Provocava-me, vendo o mundo através de seus próprios olhos. A mim, nada restava. somente o fim pelo tempo. Por meu próprio tempo, amargo.

Ela desconhecia qualquer religião, mas comportava toda a fé do mundo inscrita em seus lábios. Seu sorriso era uma embarcação à deriva no mar de todos os destinos. Ela não me fazia acreditar, mas fechar os olhos, esquecer. Simplesmente abraçava a incerteza e lançava-me a um amanhã distante, improvável. Pouco importava se tinha esperanças ou não. Quando não se tem a certeza do dia seguinte, somente liga-se para viver o presente. Eu não tinha tempo para esperança alguma, estava ocupado demais perdido entre seus lábios, braços e pernas.

“Belinda, Belinda”, era o único som que saia da minha boca. Era tudo o que eu precisava: “Belinda”. Resolvida, segura. Meu chamado sequer se aproximava de seus ouvidos. Nunca me ouvira. Nunca. E era linda assim, em seu mundo. Não que desconhecesse sua própria beleza, apenas não ligava: encontrava-se ocupada demais, encantada pelas maravilhas do universo que a cercava. Assim, nunca ligou para mim. Jamais me dirigiu uma única palavra. Falava para ninguém, apenas pela beleza do falar.

“Diga-me, Belinda, que queres de mim? Minha alma? Já a tens. Meu coração? Toma, é teu.” Não ligava. Belinda não queria saber de mim, não queria saber de amores, apenas de paixões — e conhecia bem sua própria: a vida. Hauriu minha própria, tomou-a em suas mãos. “Amo-te, Belinda. Se essa é tua condição, dou-te minha vida para estar ao teu lado.” Bobo, tudo o que sou. Deslumbrado pelo excesso da vida, reciclado e reabsorvido dentro do jogo de minha doce Belinda apenas para que algo eu pudesse ser.

Larguei tudo. Ela apenas ria e escapava por entre meus braços, correndo em direção ao nada — sorvendo, inclusive, tudo o que o nada pudesse lhe proporcionar. Uma estação de trem, sol a pino. Belinda vestia uma de minhas velhas camisas brancas e um jeans surrado. A luz delineava bem seus cabelos castanhos curtos, pela altura dos ombros. Vi ela desaparecer na linha do horizonte, sem sequer me acenar. Fora em busca de um outro tempo, de um outro pôr-do-sol. Em minha boca, apenas uma palavra: Belinda.

sábado, 30 de maio de 2009

Soledade

A cidade chora e escorre a imundície através do céu. Inevitável morte: a mística e a ilusão que revestem a noite eterna evaporam-se perante olhos abertos e desdobram-se nas ruas encardidas da manhã cinzenta. Escorrendo por entre ruelas e becos sujos, a água pluvial lava a alma da cidade nua e embala o sono profundo dos corpos sem vida. Fatídica morte dos sentimentos e apoteose das sensações, nem isso, restam apenas as ruas. Ruas imensas. Imensas e vazias. Ao testemunho da visão urbana resta somente o silêncio. Um mágico fora assassinado essa noite, devorado até as entranhas pela escuridão voraz. A vida dissipa-se dentro dos insólitos caminhos noturnos e mergulha na ausência eterna. Os braços e as pernas de João da Silva, músico e estudante, foram encontrados às margens do canal do porto pela manhã. Seu corpo jamais fora achado.

Amigos diziam que ele criava a vida com seu violão e com sua poesia — sua mágica, no entanto, não lhe salvou a própria vida. Quase conseguia rir com a ironia da situação. A verdade pura: eu não conseguia ver mística nenhuma ali, somente braços e pernas, jeans cobertos de sangue e uma imitação barata de um Rolex no pulso direito. Recoloquei o capuz, apertei a capa de chuva e, no meio daquele lamaçal, abri caminho até a viatura, esgueirando-me entres os demais policiais. Enquanto investigavam o local, eu terminava meu café. Sábado dos sonhos. Observava fixo o fluxo do canal, acompanhado pelo barulho do choque da chuva contra a lataria do carro. Não havia encanto nenhum na manhã fria. À noite, as sirenes são o canto profético da abnegação do real. Um carro cruza a avenida central num ímpeto de fúria, ultrapassa os semáforos vermelhos como um relâmpago. O diabo insano ao volante regozija-se num êxtase espiritual e atinge o ápice da vida ao chocar-se contra um ônibus distraído numa esquina. O clarão de luz revela à manhã a cidade vazia, cheiro de carniça queimada cuidadosamente depositada entre a sucata do automóvel, encharcada pela água da chuva.

A solidão imanente à vida, a morte da tão chamada vida. Da viatura, vejo o amontoado de giroflex prestar condolências finais ao nada. A cidade penetra todos os interstícios da vida. Da viatura, não sinto nada, mas fico triste com o que vejo. Perdôo os pecados do diabo humano, somente para poder dar mais um gole no café, dessa vez sem culpa. O pior de tudo é saber que, na verdade, nem triste estou. Esboço o resquício de um sentimento para provar a mim mesmo que estou vivo, que sou humano — em vão. Um imenso nada penetra meus poros. A falta da vida sedimenta-se em minha alma. E, justamente quando acho que me falta o ar pra respirar, noto que é exatamente por ter ar demais. As sensações, conheço todas elas: tal qual o frio ou o calor. Sob essa carcaça jazem as ruas encardidas, as mesmas as quais se revestem de neon e fascinam a vida urbana durante a noite.

Silêncio. Apenas observo e escuto o mundo cuidadosamente. Desço do carro e sinto a chuva molhar meu rosto para me certificar de que ainda sou de carne. Aproximo-me do ponto de impacto e sinto o cheiro fresco da morte misturado com o forte odor de uma vida evanescente que impregnara o ar no momento final da colisão. O ápice da vida. Entendo como se sentia o diabo destemido dentro do carro: ele era exatamente como eu, fugia do imenso nada que habitava a sua sombra, procurando um suspiro de vida autêntico — a combustão de todos os sentimentos na explosão de vitalidade emanante do choque do velho Camaro contra a lateral do ônibus Mercedes-Benz. Um único instante vivo é melhor do que uma eternidade inteira vagando às luzes da noite. A vida é fatal.

sábado, 23 de maio de 2009

Ilhado

Noites como essa fazem-me sentir acorrentado. O ar está pesado, carregado de umidade. Há concentração de água nas paredes e janelas — a fina barreira criada por esse acúmulo torna insuportável a vida nesse porão. De fato, está chovendo lá fora, mas essa prisão está pegando fogo. Posso ver sapatos passando rapidamente pela única fresta de ar e luz ao qual disponho: um pequeno buraco com barras de metal no topo de uma parede. Ah, sim, posso ver os mais belos tornozelos femininos e fantasiar com eles, mesmo que apenas por alguns segundos. No andar superior, a festa parece estar animada, a música frenética chega abafada aos meus ouvidos. O barulho das centenas de pés chocando-se sobre o piso de madeira que reveste meu teto diz-me que o velho bar está cheio.

Encostado na parede, só consigo pensar no meu apocalipse particular — e não há nada como um cigarro para antecipá-lo. Entretanto, só há mais dois deles na carteira, espero que bastem por hoje. Enquanto acendo o primeiro, mantenho o olhar fixo no lado de fora da vida: não há muitas pessoas transitando nem glamour algum na cidade suja. Pelo contrário: a podridão urbana parece corromper meu espaço sagrado, a chuva escorre a imundície da cidade pela minha janela improvisada. Estou um pouco confuso, acordei há pouco, no meio da madrugada, e meus últimos dias são um mistério, não me recordo de praticamente nada. Hoje deveria ser uma sexta-feira, se bem lembro. Esses últimos dias tem sido estranhos, tenho apenas alguns flashes que continuam vindo à memória. E as palavras me vêem da mesma forma: em breves relampejos. Na verdade, até mesmo as lembranças desse lugar me são escassas. As paredes sujas e suadas fazem com que eu me sinta em um matadouro. Porém, sinto um laço muito forte com esse lugar. Talvez por me manter em constante contato com a morte: imagino meu corpo suspenso, enganchado pela intersecção do pescoço e da coluna, tal qual uma vaca em um açougue. Vem-me ao pensamento a imagem de um pedaço de carne mugindo. Esboço um breve sorriso e dou mais uma tragada no cigarro, devolvendo à cidade a fumaça e a podridão que instalou em meu corpo nesses anos todos.

Por onde terei andado? Será que passei esses últimos três dias enfurnado nesse quarto? Minha fisionomia ao espelho confirma. Parece que fui atropelado por uma jamanta, minha barba está péssima, as olheiras são notorias e há resquícios de vômito no canto da minha boca. Lavo o rosto, mesmo sabendo que será inútil, meus lençóis e minha roupa estão impregnados pelo fedor da comida velha e da bebida barata, misturadas, lavadas com suco gástrico e gentilmente devolvidas para fora do meu corpo. O contato com a água me deixa sedento por uma cerveja. Caminho até o frigobar e, ao abri-lo, estranhamente não levo um choque. Pego uma longneck e tento encontrar o abridor perto do refrigerador. Em vão, terei de acender a luz. Só então noto que não é apenas aquela lata velha enferrujada que não está funcionando. Como de costume, o dono do boteco corta minha energia em noites de muito movimento. Tudo bem, tudo bem... já passei por coisas piores do que cerveja quente. Recosto-me sobre a parede novamente e continuo a apreciar o cheiro de cachorro sarnento da cidade morta que irrompe pela entrada de ar. Destampo a garrafa utilizando a camisa e tomo a cerveja para esquecer tudo — o gosto de merda faz o cheiro não parecer tão ruim assim.

Ouço batidas na porta de metal do quarto. Provavelmente não foi a primeira, mas não devo ter ouvido as demais por conta do barulho quase ensurdecedor. A maçaneta gira e um feixe de luz penetra no ambiente. Consigo ver apenas a silhueta do velho dono do bar. “Nossa! Que fedor! Acho que vou vomitar!”, diz. Levanto a cerveja, como se estivesse propondo um brinde, para confirmar que estou vivo. “Faça essa barba e trate de escovar os dentes, tenho um casamento para você realizar em vinte minutos, padre”. Não falo nada, apenas me levanto vagarosamente e vou em direção à pia. O homem, satisfeito pela minha reação, fecha a porta e vai embora. Vai ser mais uma noite daquelas. Espero não vomitar sobre os noivos dessa vez.

* obrigado ao amigo Unk.

terça-feira, 19 de maio de 2009

Nota de agradecimento

A chuva torrencial lava a alma da cidade afora. Gotas d’água chocam-se violentamente contra as janelas do meu apartamento e escorrem suavemente através do vidro, somente para serem levadas pelo vento, desesperadas. Escuto o locutor anunciar a pior tempestade na cidade dentro dos últimos dois anos. “Ventos fortes e queda de temperatura”, diz, “evitem sair de casa”. Sua voz dá lugar a uma velha viola country embalada por um teclado. A música me fala para acreditar em deus, para ter fé. Ouço o vento sussurrar e, num quase-suspiro, abandono a ele minha fé. Sinto o frio enregelar meu corpo. Vi passar cada segundo desses dois anos, noite após noite. Então, tudo bem... acho que posso acreditar em deus por hoje.

Vejo o céu logo à minha frente, chorando. Por um breve momento, o rádio silencia. Há somente a tempestade. E o barulho da chuva me faz lembrar de como ela me ensinou a ouvir. Eu lhe falava de sonhos, “há um dia melhor após a noite fria”. Um dia melhor que nunca vi chegar; do seu lado vivi apenas a noite fria. “É tudo que temos” — dizia. E era tudo que precisávamos. A mesma noite que jamais deixamos acabar, hoje, é o que me resta. Mas, dela, somente a perene escuridão e as lembranças. Do alto do meu saber, tornava-me insignificante quando confrontado por toda sua vitalidade. Teorias rasgadas, lavadas pela tempestade. De nada valia minha objetividade, jamais pude parar pra respirar ou sequer pensar meu destino. E, com o tempo, aprendi a viver assim.

“Existe um homem melhor aí”. Eu nunca havia acreditado verdadeiramente, mas me reconfortava ouvir isso. Isso e tudo mais que ela dizia, deitados no sofá, perdidos nas luzes dos prédios acesas, a ribalta da madrugada. Não havia mais nada ali, apenas duas vidas efêmeras e evanescentes, dissolvidas e unidas numa efervescência de sentimentos. Éramos passageiros de uma noite sem fim. Uma eternidade em um momento — um único segundo ao qual ela me ensinou a eternizar, pois sabia que amanhã não haveria mais nada. “As pessoas são fugazes. Você fecha os olhos e as perde. Elas vão embora, mas deixam marcas. E são essas marcas que nos fazem ser quem somos. Somos um pouco de cada pessoa que passou por nossa vida. Um sorriso ou até mesmo um olhar, quem sabe? Amanhã é isso que vai resumir toda uma história. E é isso que quero levar comigo”.

Mas, não sei ao certo se ela vivia para amar ou precisava amar para viver. Era assim, enlouquecida, que corria para os meus braços, chorando ou rindo, numa explosão de vida. E, foi assim que ela me deixou. “Hoje o amanhã chegou. Porque eu parei pra pensar nele. E nesse instante percebi que você não deixou em mim sequer uma marca. Todo o esforço que eu fazia para te conquistar num dia, precisava repetir no outro, e no outro, e no outro. É como se eu acordasse ao lado de uma pessoa completamente diferente todos os dias”. Saiu pela porta, levando o homem melhor que havia em mim.

Se a vida é sobre carregar marcas, ela deixou em mim uma cicatriz aberta. À noite, voltam os olhares e os sorrisos. Levei dois anos, mas acho que finalmente compreendi o que ela quis dizer ao me deixar. E enfim aprendi a ver o mundo um pouco como ela. Pelo tempo que caminhei solitário na chuva, hoje posso assistir à tempestade de casa. Mas, me pergunto se estás caminhando por essa tempestade ou se tu és a própria, batendo à minha janela, trazendo à tona a noite e todas essas lembranças. Por onde andares, com quem estiveres, essa é a nota de agradecimento ao final do meu livro. Livro que tu escreveste. Muito obrigado.

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Café da manhã dos campeões

Acordou. Com um misto de suavidade e agilidade levantou-se da cama. Tirou as roupas e, antes de vestir as calças, tossiu duas vezes. Vestiu as calças. Vestiu uma camisa. Um abrigo.
Caminhou descalço até o banheiro. Tinha pressa. Abriu a torneira, lavou as mãos. Esquecera o sabonete. Esfregou o sabonete contra as mãos e lavou-as novamente. Escovou cuidadosamente os dentes e aplicou gel sobre o cabelo.
Sorriu para o espelho e, admirando-se, fez um sinal de positivo com a mão.
Pegou um .38 de dentro do lava-bunda e se deu um tiro na boca. Percebeu que estava descalço e esticou o braço para tentar alcançar um dos calçados. Percebendo a impossibilidade, ainda agonizou um "Porra!" antes de morrer. Mas meio sem os erres, porque perdera uns dentes e um pedaço da nuca.

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Literatura

Gostava de ler à luz da manhã, recostado no vidro da janela. Tinha verdadeiro horror de sombras, ao menos enquanto tentava ler alguma coisa. Ironia. O objetivo do dia era absorver qualquer detalhe pertinente do romantismo doentio de Miller, ouvindo Sinatra e amaldiçoando Bukowski. Não era tarefa fácil, exigia muita concentração. Ou certa dose de estupidez.

Em posição. A luz da manhã. O livro, a música e o pensamento. A janela. O som do vidro e o mundo girando. Carros passando na rua. Ninguém vê nada. Ninguém se importa. 14 segundos. “Edifícios esvaziados de seus autômatos são ainda mais desolados do que túmulos; quando as máquinas estão paradas, criam um vazio mais profundo que a própria morte”. Um coelho nas nuvens, um teto sujo. “O sonhador tenta em vão encontrar uma forma e um contorno que se amoldem a sua essência etérea. Como um alfaiate celestial, ele prova um corpo em seguida do outro, mas todos são do tamanho errado”. Um carro voando e o céu vermelho. “Bur, como Mara, vai? Você”.

...

“Vou matar todos, um por um. Empalados em pés de cadeiras. Pelo esterno. Não, pelo ânus. Quatro por cadeira, dá umas dez cadeiras. Quando os pais descobrirem, estarei no Uruguay”. Não tinha sido um bom dia na escola. Enfiou a chave na porta, já pensando na noite inteira de trabalho pela frente. Fechou a porta atrás de si, suspirando por instantes antes de acender a luz do corredor. Subiu dolorosamente as escadas que levam ao andar dos quartos, esperando uma resposta familiar aos avisos de sua chegada, mas nada acontecia na espaçosa casa de classe média-alguma-coisa-decadente.

No pavimento superior, quatro portas abertas e nenhuma luz acesa.

...

Admirou com curiosidade a guilhotina improvisada que a janela construíra para si, e a precisão quase cirúrgica com que penetrara na carne do pescoço do rapaz. “É uma surpresa que tenha conseguido atravessar a coluna”, pensou, o vidro não parecia tão pesado antes. A cabeça jazia encostada no parapeito da sacada, olhando para o céu. Os olhos ainda abertos. Havia certa poesia. Mórbida poesia no ambiente surpreendentemente limpo, dada a situação. Apenas um fino rastro de sangue ligava a cabeça ao pescoço a que pertencia horas atrás. Abriu a janela ao lado.

— Garoto, eu avisei sobre o vidro, não avisei?

— ...

— Nunca me leva a sério, como vai consertar isso agora?

— ...

— Vou chamar a polícia, tu tá fodido. Vão te levar dessa vez.

— ...

— Logo tu, que sempre tinha algo pra dizer.

— É uma metáfora estúpida, mas não destituída de beleza.

— Tinha certeza que tu ia dizer alguma coisa. Não sabe ficar de boca fechada. Como tu fez essa merda?

— A leitura tava tensa, Miller é o cara.

— Falei pra ler Caulo Poelho. Se me ouvisse, tinha cabeça ainda. Aliás, desculpa, foi o corpo que tu perdeu.

— Nunca serviu pra nada mesmo. Espera, serviu, tenho que admitir, mas não é nobre.

— Muito engraçado.

— Bonito também.

— Teu pau já era, pode rir agora.

— Sempre fui bom em sexo oral. Sexo oral, saca? Hahaha. Foi boa, pode dizer.

— Acho que vou vomitar.

— Tudo bem, não foi tão boa assim.

— Não é bem isso. Tô falando com uma cabeça, teu corpo tá ali, segurando esse maldito livro ainda.

— Menos mal, imagina se tivesse perdido a cabeça e o livro.

— Não faz sentido.

— Falar com uma cabeça é que faz sentido. Coça meu nariz, por favor.

— Tá brincando, não vou tocar em você!

— COÇA MEU NARIZ OU EU COMEÇO A ACREDITAR EM FANTASMAS E VOLTO PRA TE ASSOMBRAR. Por favor.

— Nem fodendo. Tenta rolar e coçar ele no chão.

— Teu senso de humor melhorou, ou eu tô morto demais?

— Vou fazer um chá, quer?

— Muito engraçado.

Fez o chá, chamou a polícia e sentou no maior sofá da sala, enquanto esperava a campainha tocar. Tentou planejar as atividades do dia seguinte, em vão. O dia fora cansativo. Vai ler Caulo Poelho. E quanto ao filho sem cabeça? A vida tem dessas coisas.

domingo, 26 de abril de 2009

Portas fechadas, olhos abertos

Ela abre uma porta, deixa escapar um novo mundo. Invade as ruas, percorre o romantismo urbano com a alma. Entrega-se, apaixonada, ao ininterrupto movimento, o movimento das pessoas, dos carros, do vento, do tempo. Percebe a mágica e o mistério que pairam sobre o ar da cidade.

Lê o pensamento das pessoas, desvenda vidas, faz apostas. Mas sua própria alma lhe é ilegível. Torna-se viva, mas particularmente dependente para uma garota. Dobrando ruas, mudando rumos, fugindo de um destino certo, abrindo os olhos, fechando as portas. Passando a chave, secando as lágrimas. Há muitos caminhos lá fora, mas pouca vida.

sexta-feira, 24 de abril de 2009

Abrigo

Fui dormir tarde essa noite. Não conte à minha mãe que andei triste. Andei pela casa e apaguei as luzes. Fui até a janela do meu quarto e olhei os prédios lá fora. O silêncio me permitia ouvir o barulho do vento, eu conseguia enxergar milhares de luzes. Uma nuvem passava rapidamente pelo céu, fugindo da noite escura. O mundo às minhas costas simplesmente desabou. Restavam apenas eu, seguro no alto daquele apartamento, e o mundo à minha frente, caindo aos pedaços.

Não haviam portas, só um par de janelas. Afastei-me um passo delas e percebi a distância que me separava da vida. Olhos atentos transitavam pela noite nua. Me senti solitário envolto pela escuridão, como se a cada rua desbravasse um novo universo. Meus olhos dissecavam os detalhes da névoa bem desenhada pela luz. Eu via além. Podia sentir o odor da umidade que recobria as ruas imundas. Milhares de pessoas transitavam pelas calçadas. Sem rumo, sem tempo e sem espaço. Ali sua vida se resumia a um passo de cada vez. Milhares de vidas, milhares de passos. O movimento era fluido, deixava resquícios da vida flutuando ao ar. Podia ver a respiração pesada, tocar resquícios de sombras. Eu ouvia corações acelerados. Mas não ouvia o meu próprio. Não consegui encontrar minha sombra, nem sentir minha respiração. A vida não havia penetrado aquelas quatro paredes. De fato, jogava-se contra a minha janela, desesperada. Estendi minha mão e toquei o vidro. Podia sentir o desespero das almas perdidas além daquele quarto.

O ar tornou-se denso, senti as paredes mais próximas de mim. Estava preso em um pequeno cubículo com uma janela à minha frente. Permiti que uma lágrima escapasse. Tomei alguns segundos antes de enxugá-la. Senti-me sozinho no universo, preso dentro daquelas paredes que planavam sobre um mundo decadente. Podia ver os prédios desmoronando lentamente, como uma reação em cadeia. Um a um. Sentei-me contra a parede, estiquei minhas pernas e apenas observei a escuridão engolir vagarosamente as luzes além daquela janela. Tenho andado meio cansado, sem tempo para respirar, com o coração partido. Milhares de vezes. Não conte à minha mãe que tenho andado triste. Ela vai ficar preocupada.

domingo, 12 de abril de 2009

12 de Abril de 2009

São meia noite e trinta minutos. Acordei de repente. Há luz no corredor, eu consigo ver por baixo da porta. A televisão está ligada na sala, há risos e vozes. Vou voltar a dormir.

São duas horas e quarenta e três minutos. Acordei de repente. Não há mais luz no corredor. Também não há nenhum barulho na casa. Há música, vozes e risos lá fora. Vozes femininas cantam em coro "Ah! Que isso, elas estão descontroladas". Vai ter cú no final da noite. Vou voltar a dormir.

São três horas e trinta e dois minutos. Uma eternidade já se passou. Parou a música lá fora, mas as vozes continuam. Vozes masculinas, no entanto. Risos e barulho de garrafas quebradas. Onde há festa, há bebida. Onde há bebida, há muita gente estúpida. É tudo que eu consigo pensar no fim da noite.

São quatro horas e vinte minutos. Parece que não durmo há dois dias. Tem alguém tocando violão lá fora. Há música, vozes e risos. Os meus olhos já se adaptaram à escuridão. Até isso me incomoda. Fico pensando se eu conseguiria dormir se eu fosse dar uma mijada. Penso nos meus últimos dias, na minha solidão. Penso nos dias que estão por vir. Estou enlouquecendo, vou tentar domir.

São quatro horas e quarenta minutos. Esse sofá parece ser de pedra. Ainda estão tocando violão lá fora. Não consegui identificar nenhuma das músicas que eles tocaram. O fato é que parece que tem alguém estuprando um violão e várias pessoas gritando em coro na volta. Me faz lembrar do motivo pelo qual odeio rodas de violão. Me faz lembrar das rodas de violão em que estive e do quão estúpido eu era. Foram momentos felizes. Vou mijar e dormir.

São cinco horas e quarenta minutos. Recém percebi que hoje é Páscoa. Deu até tempo de me sentir triste antes de cair no sono.