quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Não há último adeus

(ou talvez essa seja a forma de me despedir de alguém importante)

Estavam todos de preto e calçando sapatos. Eu havia saído de casa de botas e já não contava com qualquer esperança de que cancelassem o evento — as pessoas não morrem de novo só porque você é estúpido demais para escolher botas em vez de sapatos para ir em um velório. Logo, preferi manter-me à distância, ao menos evitaria que me confundissem com um indigente, embora eu fosse da família. Era uma segunda-feira e muitas pessoas precisariam de anos para esquecer aquelas poucas horas. 

Nunca havia visto um velório tão cheio. Facilmente, poderia contar mais de duzentas pessoas ali. Uma senhora aproximou-se de mim. “Ele era importante?”, perguntou. “Foi um heroi.” “Mesmo? O que ele fez?” “Sobreviveu sessenta anos”, respondi. Rebateu meu olhar de indiferença com fúria e confusão. Desviamos o caminho de nossos olhos e eu segui acompanhando a cerimônia. Há um ponto na vida em que se apagam as fronteiras entre a vida e a morte. Os dias amanhecem cinza e a vida simplesmente resolve não lhe sorrir, você acorda exausto e não quer saber de nada e nem ninguém, apenas implora para ter uma maldita arma na primeira gaveta do seu criado-mudo. Não tem. Você amarra os sapatos e vai trabalhar, sem saber que por volta das dezenove horas vai pedir à sorte que o revólver esteja lá ao final da noite. É o seu rosário cotidiano, na falta de entorpecentes mais poderosos. 

Por um tempo cheguei a esquecer que as pessoas costumam chorar nessas horas. Era o meu sexto velório em dois anos e eu não havia derramado sequer uma lágrima. Eu não era nenhum assassino profissional, mas havia enterrado seis pessoas. Seis. Sem derramar uma única lágrima. Àquela altura, enquanto centenas prestavam condolências ao corpo desfalecido, eu prestava minha indiferença. Era visível: eu já estava morto por dentro e apenas encarava tudo aquilo me perguntando “céus, será que vou demorar muito?” Algumas pessoas contabilizam sua experiência na terra em anos de vida. Passei a marcar meu tempo em pessoas mortas. Quando você começa a perder pessoas demais, talvez deva ir embora. Digo, eu confiava em míseras duas ou três pessoas no planeta inteiro. E naquele presidente negro dos Estados Unidos. Talvez eu derramasse uma lágrima ao vê-los num caixão ou atirados à sarjeta na frente de casa. Mas a morte, até ali, não me havia amolecido. 

Uma vez me senti mal. Por deus, tinha um corpo morto ali. Dezenas choravam a perda de uma pessoa querida e eu permanecia ali, no meio de todos, a uns quatro passos de distância do caixão, checando meu relógio a cada trinta segundos. Tentei chorar. Uma mão apoiou-se sobre meu ombro. “Tudo bem, estou legal. Obrigado”, respondi, fazendo um sinal com a mão. Era o segurança, solicitando que eu me dirigisse para fora da sala: as pessoas estavam ficando incomodadas com a minha péssima atuação. É o que você ganha por tentar mostrar um pouco de respeito. 

Após algumas horas o local inteiro esvaziou. Permanecíamos eu e minhas botas, separados de um cadáver por uma parede de concreto. Encarei a inscrição no túmulo por alguns segundos. Vivera bons momentos com aquele cara, e agora ele era somente um tecido barato, vermes e dor transbordando de uma caixa de madeira. Eis a ironia: você vive uma vida prostituindo-se por alguns momentos de felicidade, a vida te leva e tudo que resta é dor para todos aqueles próximos de você. Esse é o seu legado: sessenta anos procurando a merda de uma felicidade para descobrir que essa porra toda é uma grande piada. Talvez eu esteja demorando demais mesmo. Espero que aquele revólver esteja lá essa noite.