quarta-feira, 22 de julho de 2009

Belinda

Fosse uma segunda ou uma quarta-feira, ela nem lembraria, sequer ligaria. Não situava-se em memória alguma, tempo algum. Os dias estavam ao seu lado. Os segundos eram seus. Todos eles. Passavam timidamente, um a um, quase como se pedindo licença. Transfigurava o dia e a noite, numa singela brincadeira: num suspiro nascia ao sol, no infinito se punha à noite. Extinguia-se o tempo e toda a razão de ser. Belinda emanava vida, num outro dia, num outro pôr-do-sol. Deitava-se no banco de trás do velho conversível enquanto eu dirigia, formando figuras, contando mentiras. Só notávamos que o tempo nos havia perpassado ao cair da noite. Seu destino era o horizonte, onde acordasse, aonde o vento a levasse, apenas vivia o chão sob seus pés e o céu sobre sua cabeça.

Jamais consegui decifrá-la, apenas acreditava em seus olhos — falassem a verdade ou não, bobo, pouco ligava. “Belinda, que me importa o tempo, Belinda? Nada mais. Que me vale o azul do céu profundo se somente por teus olhos posso ver? E o frio de julho, que me vale, se somente por teu toque posso senti-lo? Nada mais, Belinda. Nada mais.” Seus olhos verdes roubavam-me, a alma, a juventude. E ali, na superfície de seu olhar, encontrava-se toda sua profundidade. Era o que era, uma eterna criança. Recusara-se a crescer somente pelo prazer desse desafio. Provocava-me, vendo o mundo através de seus próprios olhos. A mim, nada restava. somente o fim pelo tempo. Por meu próprio tempo, amargo.

Ela desconhecia qualquer religião, mas comportava toda a fé do mundo inscrita em seus lábios. Seu sorriso era uma embarcação à deriva no mar de todos os destinos. Ela não me fazia acreditar, mas fechar os olhos, esquecer. Simplesmente abraçava a incerteza e lançava-me a um amanhã distante, improvável. Pouco importava se tinha esperanças ou não. Quando não se tem a certeza do dia seguinte, somente liga-se para viver o presente. Eu não tinha tempo para esperança alguma, estava ocupado demais perdido entre seus lábios, braços e pernas.

“Belinda, Belinda”, era o único som que saia da minha boca. Era tudo o que eu precisava: “Belinda”. Resolvida, segura. Meu chamado sequer se aproximava de seus ouvidos. Nunca me ouvira. Nunca. E era linda assim, em seu mundo. Não que desconhecesse sua própria beleza, apenas não ligava: encontrava-se ocupada demais, encantada pelas maravilhas do universo que a cercava. Assim, nunca ligou para mim. Jamais me dirigiu uma única palavra. Falava para ninguém, apenas pela beleza do falar.

“Diga-me, Belinda, que queres de mim? Minha alma? Já a tens. Meu coração? Toma, é teu.” Não ligava. Belinda não queria saber de mim, não queria saber de amores, apenas de paixões — e conhecia bem sua própria: a vida. Hauriu minha própria, tomou-a em suas mãos. “Amo-te, Belinda. Se essa é tua condição, dou-te minha vida para estar ao teu lado.” Bobo, tudo o que sou. Deslumbrado pelo excesso da vida, reciclado e reabsorvido dentro do jogo de minha doce Belinda apenas para que algo eu pudesse ser.

Larguei tudo. Ela apenas ria e escapava por entre meus braços, correndo em direção ao nada — sorvendo, inclusive, tudo o que o nada pudesse lhe proporcionar. Uma estação de trem, sol a pino. Belinda vestia uma de minhas velhas camisas brancas e um jeans surrado. A luz delineava bem seus cabelos castanhos curtos, pela altura dos ombros. Vi ela desaparecer na linha do horizonte, sem sequer me acenar. Fora em busca de um outro tempo, de um outro pôr-do-sol. Em minha boca, apenas uma palavra: Belinda.