segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Tempo

Sob o céu cinza que vela o dia frio, o vento faz perderem-se os segundos. Sopra para longe o tempo e imola os resíduos de vida sedimentados sobre a inércia do silêncio. No segredo da manhã, o sol irrompe o céu triste e dispara raios de luz que deslizam sobre a superfície das águas. Não há nada sob ela, é somente o puro abismo superficial. O mistério trespassa o continuum da vida e lhe rouba preciosos instantes infinitesimais.  Se a noite vale-se do charme e do artifício da aparência, a manhã é a própria ilusão, dissolvendo o mistério na intermitência do tempo e derrogando o próprio tempo, sem deixar quaisquer resquícios de seu ritual criminoso — ela nunca acontecerá.

Ninguém na praia. Acalentada pelo réquiem da tempestade, a areia fina é posta a movimentar-se, desviada fatalmente de seu destino no encontro mortal com as correntes de destruição. Voyeur não complacente, ao sol resta derramar uma lágrima, ao passo em que, lenta e timidamente, cobre seus olhos ao esconder-se por de trás das nuvens ligeiras. Ele, por sua vez, está velho, já sem destino algum. Inerte. Das costumeiras lágrimas, somente obtivera seu fulgor enferrujado pelo tempo implacável. Pós-festa, só restarão as ruínas babilônicas da beleza e da paz.

Ninguém na estrada. Sequer uma alma transiente para testemunhar o incurso do fim. Contraposição da estrada ao tempo: ao passo que o asfalto conduz a muitos destinos, o tempo, cruel e sádico, impiedoso, desvia a um só. Encontro fatal, não pode ser avistado nem mesmo nos quilômetros finais, mas nos será fiel e pontual: estará inevitavelmente lá, na justaposição dos destinos. Embaralhem-se nos caminhos, decidam livremente a sequência de estradas a seguir, esmerem-se ao planejar o percurso. Nada desvia a estratégia do tempo. Assina sua sentença, por fim, em uma deflexão diabólica. Nos metros finais, há somente o silêncio do enigma, fardo transportado ao longo de uma vida inteira. Não há perguntas, nenhum porquê, somente uma dívida não quitada da única certeza radical que se dispõe em vida, uma hipoteca com o tempo — sua condição. Nosso destino será cumprido.

Já não há vida em lugar algum. Foi-se o tempo em que ela transbordara. Havia vida por toda a parte, em demasia. Foi-se o tempo. Não há mais vida. O segredo, entretanto, mantém-se intacto. Incólume à empreitada divina do tempo, agora ele repousa sob o signo do silêncio. E, justamente quando se acreditou que o tempo arquitetava sua derrocada, despojá-lo de qualquer enigma, os dois tornaram-se cúmplices. Conjunção fatal: não foi o segredo que fora revelado ao final da vida, mas a vida que desvanecera na noite do segredo. Destino inverso ao nosso: reversão irônica sob o signo do tempo — o segredo, em algum lugar, ri de nossa diligência —, o fluxo temporal não desvela o segredo; amplia seu invólucro de enigma. Mais tempo, mais segredo. Não há vida que resista.

Pacto de sangue: a excrescência do silêncio enerva o movimento poético do tempo, que é carregado por seus próprios ventos da morte. Desfalece sob o peso insustentável de um segredo que absorvera toda a vida. Já não há mais tempo que embale o mistério. Torna-se, por fim, humano e desaparece sob seu próprio signo — o tempo está com os dias contados. Nossa contagem é também a sua. Morre por decrepitude, sepultado sob o encanto do segredo. Esse, por sua vez, jaz em seu silêncio sempiterno e passa a devorar-se a partir de seu interior. Já não há ninguém para perguntá-lo. Dívida quitada: no fim, o destino estará lá.

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