sábado, 23 de maio de 2009

Ilhado

Noites como essa fazem-me sentir acorrentado. O ar está pesado, carregado de umidade. Há concentração de água nas paredes e janelas — a fina barreira criada por esse acúmulo torna insuportável a vida nesse porão. De fato, está chovendo lá fora, mas essa prisão está pegando fogo. Posso ver sapatos passando rapidamente pela única fresta de ar e luz ao qual disponho: um pequeno buraco com barras de metal no topo de uma parede. Ah, sim, posso ver os mais belos tornozelos femininos e fantasiar com eles, mesmo que apenas por alguns segundos. No andar superior, a festa parece estar animada, a música frenética chega abafada aos meus ouvidos. O barulho das centenas de pés chocando-se sobre o piso de madeira que reveste meu teto diz-me que o velho bar está cheio.

Encostado na parede, só consigo pensar no meu apocalipse particular — e não há nada como um cigarro para antecipá-lo. Entretanto, só há mais dois deles na carteira, espero que bastem por hoje. Enquanto acendo o primeiro, mantenho o olhar fixo no lado de fora da vida: não há muitas pessoas transitando nem glamour algum na cidade suja. Pelo contrário: a podridão urbana parece corromper meu espaço sagrado, a chuva escorre a imundície da cidade pela minha janela improvisada. Estou um pouco confuso, acordei há pouco, no meio da madrugada, e meus últimos dias são um mistério, não me recordo de praticamente nada. Hoje deveria ser uma sexta-feira, se bem lembro. Esses últimos dias tem sido estranhos, tenho apenas alguns flashes que continuam vindo à memória. E as palavras me vêem da mesma forma: em breves relampejos. Na verdade, até mesmo as lembranças desse lugar me são escassas. As paredes sujas e suadas fazem com que eu me sinta em um matadouro. Porém, sinto um laço muito forte com esse lugar. Talvez por me manter em constante contato com a morte: imagino meu corpo suspenso, enganchado pela intersecção do pescoço e da coluna, tal qual uma vaca em um açougue. Vem-me ao pensamento a imagem de um pedaço de carne mugindo. Esboço um breve sorriso e dou mais uma tragada no cigarro, devolvendo à cidade a fumaça e a podridão que instalou em meu corpo nesses anos todos.

Por onde terei andado? Será que passei esses últimos três dias enfurnado nesse quarto? Minha fisionomia ao espelho confirma. Parece que fui atropelado por uma jamanta, minha barba está péssima, as olheiras são notorias e há resquícios de vômito no canto da minha boca. Lavo o rosto, mesmo sabendo que será inútil, meus lençóis e minha roupa estão impregnados pelo fedor da comida velha e da bebida barata, misturadas, lavadas com suco gástrico e gentilmente devolvidas para fora do meu corpo. O contato com a água me deixa sedento por uma cerveja. Caminho até o frigobar e, ao abri-lo, estranhamente não levo um choque. Pego uma longneck e tento encontrar o abridor perto do refrigerador. Em vão, terei de acender a luz. Só então noto que não é apenas aquela lata velha enferrujada que não está funcionando. Como de costume, o dono do boteco corta minha energia em noites de muito movimento. Tudo bem, tudo bem... já passei por coisas piores do que cerveja quente. Recosto-me sobre a parede novamente e continuo a apreciar o cheiro de cachorro sarnento da cidade morta que irrompe pela entrada de ar. Destampo a garrafa utilizando a camisa e tomo a cerveja para esquecer tudo — o gosto de merda faz o cheiro não parecer tão ruim assim.

Ouço batidas na porta de metal do quarto. Provavelmente não foi a primeira, mas não devo ter ouvido as demais por conta do barulho quase ensurdecedor. A maçaneta gira e um feixe de luz penetra no ambiente. Consigo ver apenas a silhueta do velho dono do bar. “Nossa! Que fedor! Acho que vou vomitar!”, diz. Levanto a cerveja, como se estivesse propondo um brinde, para confirmar que estou vivo. “Faça essa barba e trate de escovar os dentes, tenho um casamento para você realizar em vinte minutos, padre”. Não falo nada, apenas me levanto vagarosamente e vou em direção à pia. O homem, satisfeito pela minha reação, fecha a porta e vai embora. Vai ser mais uma noite daquelas. Espero não vomitar sobre os noivos dessa vez.

* obrigado ao amigo Unk.

4 comentários:

  1. não posso deixar de notar uma incrível influência do buko.
    ótimo texto, gui.

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  2. Matou aquele velho maldito, pelo jeito. Já era hora.

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  3. Tu é muito bom cara. Adorei isso. O primeiro parágrafo entao, que vai situando aos poucos, sem revelar muita coisa, faz querer ler mais, até o fim. Parabéns Zé!

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