quinta-feira, 14 de maio de 2009

Literatura

Gostava de ler à luz da manhã, recostado no vidro da janela. Tinha verdadeiro horror de sombras, ao menos enquanto tentava ler alguma coisa. Ironia. O objetivo do dia era absorver qualquer detalhe pertinente do romantismo doentio de Miller, ouvindo Sinatra e amaldiçoando Bukowski. Não era tarefa fácil, exigia muita concentração. Ou certa dose de estupidez.

Em posição. A luz da manhã. O livro, a música e o pensamento. A janela. O som do vidro e o mundo girando. Carros passando na rua. Ninguém vê nada. Ninguém se importa. 14 segundos. “Edifícios esvaziados de seus autômatos são ainda mais desolados do que túmulos; quando as máquinas estão paradas, criam um vazio mais profundo que a própria morte”. Um coelho nas nuvens, um teto sujo. “O sonhador tenta em vão encontrar uma forma e um contorno que se amoldem a sua essência etérea. Como um alfaiate celestial, ele prova um corpo em seguida do outro, mas todos são do tamanho errado”. Um carro voando e o céu vermelho. “Bur, como Mara, vai? Você”.

...

“Vou matar todos, um por um. Empalados em pés de cadeiras. Pelo esterno. Não, pelo ânus. Quatro por cadeira, dá umas dez cadeiras. Quando os pais descobrirem, estarei no Uruguay”. Não tinha sido um bom dia na escola. Enfiou a chave na porta, já pensando na noite inteira de trabalho pela frente. Fechou a porta atrás de si, suspirando por instantes antes de acender a luz do corredor. Subiu dolorosamente as escadas que levam ao andar dos quartos, esperando uma resposta familiar aos avisos de sua chegada, mas nada acontecia na espaçosa casa de classe média-alguma-coisa-decadente.

No pavimento superior, quatro portas abertas e nenhuma luz acesa.

...

Admirou com curiosidade a guilhotina improvisada que a janela construíra para si, e a precisão quase cirúrgica com que penetrara na carne do pescoço do rapaz. “É uma surpresa que tenha conseguido atravessar a coluna”, pensou, o vidro não parecia tão pesado antes. A cabeça jazia encostada no parapeito da sacada, olhando para o céu. Os olhos ainda abertos. Havia certa poesia. Mórbida poesia no ambiente surpreendentemente limpo, dada a situação. Apenas um fino rastro de sangue ligava a cabeça ao pescoço a que pertencia horas atrás. Abriu a janela ao lado.

— Garoto, eu avisei sobre o vidro, não avisei?

— ...

— Nunca me leva a sério, como vai consertar isso agora?

— ...

— Vou chamar a polícia, tu tá fodido. Vão te levar dessa vez.

— ...

— Logo tu, que sempre tinha algo pra dizer.

— É uma metáfora estúpida, mas não destituída de beleza.

— Tinha certeza que tu ia dizer alguma coisa. Não sabe ficar de boca fechada. Como tu fez essa merda?

— A leitura tava tensa, Miller é o cara.

— Falei pra ler Caulo Poelho. Se me ouvisse, tinha cabeça ainda. Aliás, desculpa, foi o corpo que tu perdeu.

— Nunca serviu pra nada mesmo. Espera, serviu, tenho que admitir, mas não é nobre.

— Muito engraçado.

— Bonito também.

— Teu pau já era, pode rir agora.

— Sempre fui bom em sexo oral. Sexo oral, saca? Hahaha. Foi boa, pode dizer.

— Acho que vou vomitar.

— Tudo bem, não foi tão boa assim.

— Não é bem isso. Tô falando com uma cabeça, teu corpo tá ali, segurando esse maldito livro ainda.

— Menos mal, imagina se tivesse perdido a cabeça e o livro.

— Não faz sentido.

— Falar com uma cabeça é que faz sentido. Coça meu nariz, por favor.

— Tá brincando, não vou tocar em você!

— COÇA MEU NARIZ OU EU COMEÇO A ACREDITAR EM FANTASMAS E VOLTO PRA TE ASSOMBRAR. Por favor.

— Nem fodendo. Tenta rolar e coçar ele no chão.

— Teu senso de humor melhorou, ou eu tô morto demais?

— Vou fazer um chá, quer?

— Muito engraçado.

Fez o chá, chamou a polícia e sentou no maior sofá da sala, enquanto esperava a campainha tocar. Tentou planejar as atividades do dia seguinte, em vão. O dia fora cansativo. Vai ler Caulo Poelho. E quanto ao filho sem cabeça? A vida tem dessas coisas.

2 comentários:

  1. Bah, adorei o modo da escrita. fatos jogados em metaforas e que lendo separados e rapidamente nada faz sentindo, mas quem quer entender consegue ver tdo. e até participar..
    Me vi fumando um cigarro, tomando um café com whisky e lendo algo relativo a psicanalise!!!
    Adorei...
    abs

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  2. Já li três vezes essa insanidade e não consigo evitar rir do sexo oral.

    Não lhe tinha sido uma boa escola. Enfiou a porta no meio da chave, já trabalhando no pensamento inteiro da noite pela frente. Atrasou a fechadura da porta em si, acendendo instantes antes de suspirar a luz. Tomou um choque do cacete e desmaiou no corredor. Nem conseguiu se matar.

    Desarranjo mental - feito para salvar vidas.

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