sábado, 30 de maio de 2009

Soledade

A cidade chora e escorre a imundície através do céu. Inevitável morte: a mística e a ilusão que revestem a noite eterna evaporam-se perante olhos abertos e desdobram-se nas ruas encardidas da manhã cinzenta. Escorrendo por entre ruelas e becos sujos, a água pluvial lava a alma da cidade nua e embala o sono profundo dos corpos sem vida. Fatídica morte dos sentimentos e apoteose das sensações, nem isso, restam apenas as ruas. Ruas imensas. Imensas e vazias. Ao testemunho da visão urbana resta somente o silêncio. Um mágico fora assassinado essa noite, devorado até as entranhas pela escuridão voraz. A vida dissipa-se dentro dos insólitos caminhos noturnos e mergulha na ausência eterna. Os braços e as pernas de João da Silva, músico e estudante, foram encontrados às margens do canal do porto pela manhã. Seu corpo jamais fora achado.

Amigos diziam que ele criava a vida com seu violão e com sua poesia — sua mágica, no entanto, não lhe salvou a própria vida. Quase conseguia rir com a ironia da situação. A verdade pura: eu não conseguia ver mística nenhuma ali, somente braços e pernas, jeans cobertos de sangue e uma imitação barata de um Rolex no pulso direito. Recoloquei o capuz, apertei a capa de chuva e, no meio daquele lamaçal, abri caminho até a viatura, esgueirando-me entres os demais policiais. Enquanto investigavam o local, eu terminava meu café. Sábado dos sonhos. Observava fixo o fluxo do canal, acompanhado pelo barulho do choque da chuva contra a lataria do carro. Não havia encanto nenhum na manhã fria. À noite, as sirenes são o canto profético da abnegação do real. Um carro cruza a avenida central num ímpeto de fúria, ultrapassa os semáforos vermelhos como um relâmpago. O diabo insano ao volante regozija-se num êxtase espiritual e atinge o ápice da vida ao chocar-se contra um ônibus distraído numa esquina. O clarão de luz revela à manhã a cidade vazia, cheiro de carniça queimada cuidadosamente depositada entre a sucata do automóvel, encharcada pela água da chuva.

A solidão imanente à vida, a morte da tão chamada vida. Da viatura, vejo o amontoado de giroflex prestar condolências finais ao nada. A cidade penetra todos os interstícios da vida. Da viatura, não sinto nada, mas fico triste com o que vejo. Perdôo os pecados do diabo humano, somente para poder dar mais um gole no café, dessa vez sem culpa. O pior de tudo é saber que, na verdade, nem triste estou. Esboço o resquício de um sentimento para provar a mim mesmo que estou vivo, que sou humano — em vão. Um imenso nada penetra meus poros. A falta da vida sedimenta-se em minha alma. E, justamente quando acho que me falta o ar pra respirar, noto que é exatamente por ter ar demais. As sensações, conheço todas elas: tal qual o frio ou o calor. Sob essa carcaça jazem as ruas encardidas, as mesmas as quais se revestem de neon e fascinam a vida urbana durante a noite.

Silêncio. Apenas observo e escuto o mundo cuidadosamente. Desço do carro e sinto a chuva molhar meu rosto para me certificar de que ainda sou de carne. Aproximo-me do ponto de impacto e sinto o cheiro fresco da morte misturado com o forte odor de uma vida evanescente que impregnara o ar no momento final da colisão. O ápice da vida. Entendo como se sentia o diabo destemido dentro do carro: ele era exatamente como eu, fugia do imenso nada que habitava a sua sombra, procurando um suspiro de vida autêntico — a combustão de todos os sentimentos na explosão de vitalidade emanante do choque do velho Camaro contra a lateral do ônibus Mercedes-Benz. Um único instante vivo é melhor do que uma eternidade inteira vagando às luzes da noite. A vida é fatal.

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