terça-feira, 19 de maio de 2009

Nota de agradecimento

A chuva torrencial lava a alma da cidade afora. Gotas d’água chocam-se violentamente contra as janelas do meu apartamento e escorrem suavemente através do vidro, somente para serem levadas pelo vento, desesperadas. Escuto o locutor anunciar a pior tempestade na cidade dentro dos últimos dois anos. “Ventos fortes e queda de temperatura”, diz, “evitem sair de casa”. Sua voz dá lugar a uma velha viola country embalada por um teclado. A música me fala para acreditar em deus, para ter fé. Ouço o vento sussurrar e, num quase-suspiro, abandono a ele minha fé. Sinto o frio enregelar meu corpo. Vi passar cada segundo desses dois anos, noite após noite. Então, tudo bem... acho que posso acreditar em deus por hoje.

Vejo o céu logo à minha frente, chorando. Por um breve momento, o rádio silencia. Há somente a tempestade. E o barulho da chuva me faz lembrar de como ela me ensinou a ouvir. Eu lhe falava de sonhos, “há um dia melhor após a noite fria”. Um dia melhor que nunca vi chegar; do seu lado vivi apenas a noite fria. “É tudo que temos” — dizia. E era tudo que precisávamos. A mesma noite que jamais deixamos acabar, hoje, é o que me resta. Mas, dela, somente a perene escuridão e as lembranças. Do alto do meu saber, tornava-me insignificante quando confrontado por toda sua vitalidade. Teorias rasgadas, lavadas pela tempestade. De nada valia minha objetividade, jamais pude parar pra respirar ou sequer pensar meu destino. E, com o tempo, aprendi a viver assim.

“Existe um homem melhor aí”. Eu nunca havia acreditado verdadeiramente, mas me reconfortava ouvir isso. Isso e tudo mais que ela dizia, deitados no sofá, perdidos nas luzes dos prédios acesas, a ribalta da madrugada. Não havia mais nada ali, apenas duas vidas efêmeras e evanescentes, dissolvidas e unidas numa efervescência de sentimentos. Éramos passageiros de uma noite sem fim. Uma eternidade em um momento — um único segundo ao qual ela me ensinou a eternizar, pois sabia que amanhã não haveria mais nada. “As pessoas são fugazes. Você fecha os olhos e as perde. Elas vão embora, mas deixam marcas. E são essas marcas que nos fazem ser quem somos. Somos um pouco de cada pessoa que passou por nossa vida. Um sorriso ou até mesmo um olhar, quem sabe? Amanhã é isso que vai resumir toda uma história. E é isso que quero levar comigo”.

Mas, não sei ao certo se ela vivia para amar ou precisava amar para viver. Era assim, enlouquecida, que corria para os meus braços, chorando ou rindo, numa explosão de vida. E, foi assim que ela me deixou. “Hoje o amanhã chegou. Porque eu parei pra pensar nele. E nesse instante percebi que você não deixou em mim sequer uma marca. Todo o esforço que eu fazia para te conquistar num dia, precisava repetir no outro, e no outro, e no outro. É como se eu acordasse ao lado de uma pessoa completamente diferente todos os dias”. Saiu pela porta, levando o homem melhor que havia em mim.

Se a vida é sobre carregar marcas, ela deixou em mim uma cicatriz aberta. À noite, voltam os olhares e os sorrisos. Levei dois anos, mas acho que finalmente compreendi o que ela quis dizer ao me deixar. E enfim aprendi a ver o mundo um pouco como ela. Pelo tempo que caminhei solitário na chuva, hoje posso assistir à tempestade de casa. Mas, me pergunto se estás caminhando por essa tempestade ou se tu és a própria, batendo à minha janela, trazendo à tona a noite e todas essas lembranças. Por onde andares, com quem estiveres, essa é a nota de agradecimento ao final do meu livro. Livro que tu escreveste. Muito obrigado.

4 comentários:

  1. Fica difícil fazer qualquer comentário depois do que li em tempos de crises [das mais diversas formas que essa palavra poderia ter].
    Que profundo e como eu gosto de te ler. Acho que fica um pouco de ti em cada frase. Acho que leio um pouco até mesmo de mim
    [mesmo que seja tão involuntário da tua parte.] Obrigada.

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  2. eu disse que devia postar.
    sempre muito inteligente.

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  3. o blog zeroismo é só pra convidados ? o que tem lá de especial pra isso ? revelações eróticas ? fotos dando o rabo ? baita frescura

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